Morreu um vulto da democracia
e da liberdade e já tudo terá sido dito e escrito como reacção à sua morte -
até a boçalidade sinistra de algumas afirmações. O que falta agora
escrever, será a História a fazê-lo, mas não é ainda o tempo. É tempo isso sim,
de nesta primeira edição de 2017 do Noticias de Barroso ter o prazer de afirmar
– ainda que contra ventos e marés - como em vida marcou o nosso
caminho como país nas últimas décadas, numa luta contínua por valores
essenciais – os valores da Liberdade e da Democracia.
Mas sendo assim, impõe-se
desde já uma questão prévia: será que Mário Soares decidiu sempre bem ao longo
da sua vida?!... A resposta é obviamente não. E será que fez sempre tudo
bem?!... Também não. Porquê?!... Simplesmente porque era apenas um Homem!… Um
Homem com virtudes e com defeitos, como qualquer outro homem.
Por razões profissionais,
cruzei-me algumas vezes com Mário Soares!... Nunca me convenceu como pessoa, e
tenho ainda hoje do senhor, a mesma imagem que tinha há 28 anos, quando da sua passagem
pela Presidência da República. Apesar disso, tal não me impede de o ter
admirado enquanto politico. A afectividade, nada tem a ver com o desempenho e a
competência de cada um. E não o digo por acaso: digo-o, para lembrar aos
“pobres e mal agradecidos” e a outros “acorrentados às suas atitudes, e até
nalguns casos às suas paranóias”, que mesmo não se gostando da sua figura,
possivelmente já terão esquecido que foi o seu "radicalismo político"
quecontribuíu de sobremaneira para a construção do regime democrático do país,
para a restauração das liberdades e para a consolidação da democracia. Sem
Mário Soares, Portugal não seria hoje seguramente o mesmo país que é. Ora
é exactamente perante estes factos que apenas a demência poderá contrariar, que
prefiro estar do lado certo da História, e deixar “os saudosistas” que por aí
pululam com acusações e insultos em caixas de comentários, entregues aos seus
sintomas da degradação dos tempos que vivemos. Não alinho nem em
classificações depreciativas, nem em elogios de circunstância. Recordo apenas
um Homem que viveu intensamente, que correu riscos, mas acima de tudo, um Homem
corajoso antes e depois de Abril de 1974. É exactamente por isso, que não me
custa afirmar, que politicamente Mário Soares foi um gigante, senão o maior de
todos. A sua coragem política e física, assumiram proporções épicas.
Filho de um repúblicano e
Ministro da Primeira República, que deixou até hoje um importante legado na
pedagogia e no ensino - o Colégio da família foi uma ilharga de pensamento
livre durante a longa noite da ditadura – Soares, influenciado por Álvaro
Cunhal, iniciou a sua actividade política conhecida apenas com 14 anos de
idade. No longínquo ano de 1943, quando a Europa ainda estava ocupada pelos
nazis, integrou o Movimento de Unidade Anti-Fascista - o MUNAF e dois anos
depois, fundou o MUD juvenil, que lhe valeu a sua primeira prisão pela PIDE. Ao
longo da sua caminhada na luta pela democracia, foi ainda preso mais 12 vezes,
antes de ser deportado para São Tomé, passando longos períodos encarcerado e
afastado da família, enquanto outros tratavam da sua vidinha, sem se importarem
de hipotecar a sua própria consciência - se é que a tinham. Apoiou o
General Norton de Matos em 1949 e o General Humberto Delgado em 1958, em ambos
os casos desafiando a ordem imposta por Salazar. Foi militante do PCP e
afastou-se perante os sombrios ventos de leste, mas nunca deixou de manter
pontes com a oposição comunista ao regime. Fez-se advogado e notabilizou-se por
defender presos políticos, sendo mais uma vez preso por causa disso em 1965.
Escreveu para a revista “O Tempo e o Modo”, e conviveu ao longo de décadas com
todos os grandes intelectuais portugueses, académicos, escritores e
investigadores. Esteve envolvido na revolta conspirativa da Sé, fundou a
Resistência Repúblicana e Socialista em 1953 e a Acção Socialista Popular em
1964 em Genebra. Redigiu o Programa para a Democratização da República, foi
candidato a deputado pela Oposição Democrática em 1965 e pela CEUD em 1969. Em
1970 fruto da sua participação no Congresso Republicano de Aveiro, o regime
força-o ao exílio definitivo em França, donde publica o famoso livro “Portugal
Amordaçado”, o primeiro entre os mais de 100 títulos que editou até à sua
morte, e em 1973 foi um dos fundadores do Partido Socialista na Alemanha.
A 25 de Abril de 1974, um
golpe militar de jovens capitães põe finalmente fim à mais longa ditadura da
Europa ocidental, acabando com um regime que já durava há 48 anos, e Mário
Soares então com 49 anos de idade chega a Portugal de comboio, para uma semana
depois já estar a percorrer todas as capitais democráticas europeias, para
apresentar o modelo de transição democrática decorrente do golpe, e obter o seu
apoio.
Apoio esse que conseguiu, e ao
qual aliou importantes investimentos que resultaram da sua acção, das ligações
da Internacional Socialista, e de uma relação especial com a então República
Federal Alemã, de que resultou a instalação em Portugal da fábrica Auto-Europa,
empresa de grande sucesso ainda hoje sediada em Portugal. Como Ministro dos
Negócios Estrangeiros teve um papel fundamental no reconhecimento internacional
da jovem democracia, resistiu às tentações totalitárias do PREC, foi o rosto da
alternativa democrática ao bloco do leste organizando algumas das maiores
manifestações do século na Alameda D. Afonso Henriques em Lisboa e no antigo
Estádio das Antas no Porto, e foi também o principal impulsionador da adesão de
Portugal à então denominada CEE, cujo tratado viria a assinar em 12 de Junho de
1985. O resto do seu legado é já por demais conhecido.
Dito isto, é pois tempo de
afirmar que se há uma personalidade que pode personificar politicamente o
actual regime democrático em Portugal, essa personalidade é indubitavelmente
Mário Soares, verdadeiro "patriarca" desta República, ao protagonizar
todas as grandes etapas da transição e consolidação democrática: a militância
contra a longa ditadura do chamado Estado Novo; a revolução do 25 de abril; a
democratização e a descolonização; a luta pela democracia constitucional; a
consolidação da democracia parlamentar contra as tentações presidencialistas e
caudilhistas; e acima de tudo o seu porfiado empenho na adesão de Portugal ao
processo de integração europeia.
Resta afirmar, que há pessoas
que nasceram para não correrem riscos, que não fazem nada, que não
sentem nada, que não mudam, que não crescem, que não amam, que não vivem e
que apenas se limitam ao politicamente correcto. Essas, são pessoas
acorrentadas às suas atitudes que se deixam privar do que de melhor a liberdade
lhes oferece – a Liberdade.
Somente a pessoa que corre riscos é livre!... Mário Soares foi livre até à sua
morte.
São pois estes grandes Homens
que moldam a História, e Portugal deve estar-lhe grato por isso. Soares foi um
deles, e por isso aqui lhe deixo, o meu reconhecimento pessoal.
Domingos Chaves
Crónica publicada no jornal
quinzenário Noticias de Barroso
de 16 de Janeiro 2017