O dia 24 de Março marcou o momento em que passámos a viver mais dias em liberdade do que sobre o jugo da ditadura salazarista. Foram 17.499 dias, correspondentes a 48 anos de Estado Novo!... Uma longa "noite" que hoje alguns sem qualquer pudor pretendem relativizar com a leveza de quem a não tendo vivido na pele a vêem como um lugar de virtudes, e onde a falta das mais básicas liberdades e garantias são um pormenor que não belisca o bafio das falsas moralidades apregoadas.
Quem viveu e testemunhou a pobreza endémica,
quem passou pelas prisões do regime, encarcerados por delito de opinião, pelos
que pagaram com a liberdade e alguns, até com a vida a ousadia de pensar
livremente e desejar um outro Portugal, são testemunhas muitas vezes
silenciosas de um Portugal que hoje parece inconcebível para quem já nasceu
depois do 25 de Abril de 1974.
Agora, que se deram início às comemorações dos 50 anos da
Revolução dos Cravos, mais do que o trivial e das palavras de ocasião, o que
deve ser sublimado é a memória, a memória vivida das pessoas que contribuíram
cada uma com as suas capacidades e no seu contexto, para que neste dia pudéssemos
celebrar finalmente, a ultrapassagem da liberdade à longa noite da ditadura.
Contar na primeira pessoa o que é a privação da liberdade e a coação sobre o livre pensamento, sobre a imprensa decorada a carimbos vermelhos da Censura, sobre quem atirava para baixo do tapete, muitas vezes arbitrariamente, o mínimo relance da realidade que se vivia no país e no mundo, é um dever de quem viveu esse tempo de opressão. É preciso dizer como se varria das páginas dos jornais os crimes, a pobreza, as vagas de emigração, a corrupção, as vozes dissonantes, os estudos comparativos que colocavam Portugal - aí sim - sucessivamente na cauda do mundo Ocidental em termos de desenvolvimento económico e social. É preciso lembrar a vergonhosa taxa de analfabetismo, os cuidados de saúde dos cerca de 80 em cada 100 pessoas estavam excluídas, onde as maleitas eram tratadas com os meios possíveis, que isso de hospitais e centros de saúde abertos a todos e em todo o país era coisa de ficção. É preciso lembrar a taxa de mortalidade infantil, a esperança média de vida, o rendimento per capita, tudo indicadores que não podíamos saber - nem os nossos nem o comparativo com os dos outros - porque envergonhavam quem fazia da pobreza “alegre” uma moral vigente. É preciso recordar o viver de um contentamento descontente que Luís Vaz de Camões usou noutros contextos e a míngua como atestado permanente, do total desprezo pelos “não abençoados” do regime de então.
Hoje, temos mais dias de liberdade do que de ditadura e nestes 17.507 dias construiu-se um novo Portugal. Com falhas, com lapsos, com erros, com omissões, e até com imperfeições que todos . em liberdade - podemos conhecer, debater e assumir, porque não se vive sob as amarras da censura, do medo, e da tenebrosa PIDE - a policia politica do Estado Novo. Nestes 17.507 dias, ergueu-se um país que para a maioria da população se fez quase do zero.
Mas melhor do que os gráficos comparativos, é perguntar por aí!... Alguém que tenha dúvidas, que apelem à memória dos cinquentenários e principalmente dos sexagenários e septuagenários. Perguntem a quem viveu nestes “dois países” sobre o que ficou para trás e o sobre o que foi construído. Falem com as pessoas, muito particularmente com aquelas que ao tempo viviam neste hoje denominado mundo rural, sobre as fronteiras exíguas da liberdade, sobre o mundo do trabalho, sobre a saúde, sobre a alimentação ou sobre as condições das casas. Perguntem a quem vos dará em escassas frases todo um extraordinário eco de uma vida de contrastes.
Que viva
a liberdade…